17 de jul. de 2009

o segredo de jurema.


Jurema não sabia o que fazer com o tempo que lhe sobrava. o episódio da novela acabou, começou um daqueles filmes violentos, de ação, fricção, ficção. - uma chateação!” - pensou apertando o botão. desligara a televisão e olhava para um nada além do que se vê. à sua frente devia é estar alguma paisagem guardada na memória. daquelas tão arraigadas que podem ser projetadas pela própria íris, como um cinema na parede da sala. bufava suspiros trespassados de ansiedade e olhava para a casa vazia como quem vê a sua frente um túmulo ou um santuário. o silêncio, o silêncio que só tiquetaquear do relógio perturbava, percorria mais um dia seu. Jurema sem louça para lavar, Jurema desfeita desabando no sofá. tudo em ordem, tão limpo e asseado. e agora? José é que não estava lá para estragar.

unhas feitas, um canto se quebrou ainda quando lavava a louça. indo buscar a lixa no banheiro, viu aquele vulto percorrendo o espelho. uma surpresa para Jurema, ter tempo para olhar no espelho, que não fosse pra espanar-lhe o pó. os meninos crescidos, a morte repentina do marido, Jurema acompanhada só de si mesma – e se lá há jeito de viver sozinho quem tão somente viveu para os outros!

lá estava, e aquele borrão revirado que lhe olhava de volta (“-essa sou mesmo eu?”) era ela. se deteve alguns instantes - soluços do tempo refletidos no vidro reflexivo logo adiante - vendo sua imagem, tentando dar-se por conta de que era ela mesma a única alma penada habitando a casa. não tecia comentários de si para si mesma, feito narciso às avessas, contentava-se em ser um dos narcisos que apenas , e só então, descobre que há uma fonte. e via,via-senenhum espelho seria tão sensível para captar o reflexo da tímida palpitação que agoniava o peito de amélia que Jurema tinha.

a mulher, estranha de si mesma (não era dada a desfrutes) catou, no fundo da cômoda, um blush e um batom avermelhados feito o carmim do escárnio. os dois esquecidos e rançosos, com cheiro de um tempo que se foi. sem vaidade já não era. guardara-se a salvo sob um manto branco de virtude por tanto tempo e, já agora, estava também corrompida. luxuriosa, Jurema se pintou, se borrou, se coloriu. havia outra pessoa além da penteadeira. e essa pessoa ria aprovando a luxúria de Jurema.

desajeitada, a mão trêmula errara o traço do delineador. não sem algum embaraço, Jurema vestiu-se. não se diria daquela mulher, assim, na rua: -bonita!”. Eram umas sobras no vestido, um corpo que já não é mais o mesmo no tecido a que os anos não fizeram diferença nenhuma, exceto pelo cheiro de guardado e o leve amarelado de uma fazenda dessas que passam a vida toda esperando para ver o mundo de fora do armário. eram umas rugas, uns vincos, umas marcas que lá estavam anunciando sofrimentos, perdas e ganhos (uma vida, uma vida comum, enfim).

a vaidade inebriava, tornava Jurema certa de si a ponto de não precisar mais do espelho para se certificar de que ela era. que ninguém a visse, ela enxergava-se onde os olhos não chegam. era. seus passos estavam leves. calçou as sapatilhas brancas. e se eu os dissesse que foram os sapatos que a guiaram até porta, sem que Jurema com eles pudesse, vocês acreditariam?

ainda hesitou. seria direito? e se os vizinhos ainda estivessem acordados? Jurema nem percebeu o taco frouxo do salto do sapato quando deu seu primeiro passo. um tropeço, uma vacilação, e Jurema como que reaprendeu a andar. bebeu do vinho da juventude. em seu delírio, estava triunfal, era uma musa a quem a noite reservava delícias e ardores.

aonde iria?

não importava destino. iria. tão musa era e não precisava de rota. sentia a vida como uma corrente de ar que lhe passava por baixo do vestido. uma corrente que controlaria se firmasse seus pés com mais força no chão. Jurema, dentro de si, onde era mais desconhecida que diante do espelho, só sentia que se pudesse andar com seus próprios pés, então, não teria de se preocupar com mais nada.